Comunicação AAENFF – 20/04/2021
No dia 20 abril a Associação de Amigos da ENFF realizou entrevista com o ex-deputado José Genoíno Neto para compreender a questão militar no Brasil historicamente, e o que representa para a conjuntura brasileira a presença de tantos militares no governo Bolsonaro.
Genoíno é um dos fundadores do PT, na juventude foi da resistência armada à ditadura, foi preso na Guerrilha do Araguaia, sobreviveu, foi anistiado na redemocratização, teve uma longa presença no Congresso Nacional, inclusive como Constituinte entre 1986 e1988. No governo Lula (2003) foi assessor especial do Ministério da Defesa, onde se aprofundou ainda mais nos conhecimentos sobre a questão militar no Brasil.
Genoíno afirma que, embora fortemente influenciado pelas forças armadas, o governo vigente não é militar aos moldes da ditadura. Trata-se de um governo com tutela militar, termo originado na ideia das forças armadas como tutores da nação, na garantia da lei e da ordem, plantada na Constituição de 1934, permanecendo até a Constituição Federal de 1988. Dentre os problemas que existem com essa percepção, são apontados como centrais a caça a inimigos internos inexistentes, como os movimentos sociais, de negros, mulheres, indígenas e quilombolas, “que sempre foram tratados com preconceito ou então como inimigos”, exemplifica. Durante a ditadura militar, esse conceito irá ser aplicado de forma ainda mais ampla: “Se vocês analisarem o preâmbulo do Ato Institucional nº 1, que vale a pena estudar, ele coloca ali uma concepção das forças armadas como se tivessem a legitimidade absoluta para exercer a tutela, é uma espécie de poder único que está acima dos demais poderes, se autolegitima”.
Ele aponta que o primeiro governo do PT (2003-2010) deveria ter enfrentado esse problema modificando o artigo 142 da Constituição Federal para não banalizar a “garantia da lei e da ordem”. Outro erro teria sido aprovar tardiamente a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – somente em 2011 – para quebrar a resistência dos militares, que nunca aceitaram ser investigados por civis. Outro problema, segundo Genoíno, é a militarização da Segurança Pública, prevista no artigo 144 da Constituição Federal, que diz em seu parágrafo 6º que as polícias militares são forças auxiliares e de reserva das forças armadas.
Militarização do Estado
Há, atualmente, intensa presença de militares em cargos de livre nomeação no governo Bolsonaro, acentuando esse caráter de tutela. Para o ex-deputado, deveria haver uma quarentena nas funções públicas para militares que deixam a ativa, assim como para promotores e juízes, para que não se pudesse sair dessas atividades e imediatamente assumir funções de Estado, como ocorre no governo de Jair Bolsonaro. Os casos mais comuns são de militares, há o caso de Sérgio Moro, juiz no processo que impediu Lula de participar das eleições de 2018 e que em seguida assumiu o Ministério da Justiça no governo que, indiretamente, ajudou e eleger. “Essa ocupação dos cargos da política é uma espécie de militarização do Estado, e está acontecendo agora de maneira exagerada”.
Genoíno informa que dos 18 generais que tinham posições de comando no Exército em 2018, 15 exercem cargos altamente comissionados no atual governo. Bolsonaro teria lançado sua candidatura já em 2014 dentro da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), após a eleição de Dilma Rousseff, passando quatro anos preparando sua ascensão, com apoio dos militares. Ele também lembra que a intervenção militar no Rio de Janeiro, comandada pelo general Braga Neto, para contenção da violência do tráfico, foi uma movimentação aproveitada pelo bolsonarísmo como argumento eleitoral. Há então uma “militarização da política e uma partidarização dos militares”, acentuada desde então, o que “gerou uma deformação autoritária, que é uma tutela aberta ou encoberta”.
Um sinal disso seria a indicação pelas Forças Armadas de um general para o Ministério da Defesa, até então comandado por civis. Deveria ser “o contrário, o governo que é eleito pelo voto indica o Ministro da Defesa, que vai comandar as Forças Armadas; é o poder político que comanda as armas”, e no Brasil aconteceu justamente o contrário. “Mao Tsé Tung dizia: a política comanda a ponta do fuzil; isso vale para a esquerda ou para a direita. Quando o militar intervém na política, isso é uma deformação em qualquer lugar”, afirma Genoíno.
Para o ex-deputado, as crises do sistema de justiça, do Congresso nacional e das Forças Armadas são, em parte, produto do golpe de 2016. No entanto, com relação aos militares, Genoíno aponta que o golpe estaria apenas como pano de fundo de tais de deformações, uma vez que estes atuaram ativamente na arquitetura do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff por meio das mídias sociais e de pressão e articulação política, bem diferente do ocorrido na época do impeachment do Collor: “Na hora que os militares atuam, eles entram e o leão não volta para a jaula. Portanto essa intervenção é muito profunda, esse governo só foi eleito por causa deles e só se segura por causa deles. Imaginar que eles vão sair é ilusão. Também não vão dar golpe porque não precisam, eles deram o golpe já em 2016. O que pode acontecer é acentuar o caráter repressivo desse processo”.
Militares de esquerda não existem
Não há como existir, de acordo com Genoíno, uma liderança militar de esquerda que nos conduza a uma possível saída, como se tentou fazer na resistência ao golpe militar. Para ele, não existem militares ou juízes de toga de esquerda para mudarem os rumos das coisas, esse é um falso caminho. A mudança do país vem pela organização popular, pelo povo como protagonista e pelos partidos populares. Os militares têm de ter um papel profissional e não político: “Porque se você abre para uma disputa entre esquerda e direita dentro das forças armadas, você cria a anarquia militar. E as forças armadas, o que elas são em última instância? Elas são parte integrante do Estado capitalista. Na hora ‘H’ elas vão cumprir a ordem; por isso elas não abrem mão do conceito da lei e ordem. O que é ordem? É tudo. O que é lei? É tudo”.
A vocação natural das Forças Armadas é a de proteger o território e sua soberania, as fronteiras terrestres e marítimas. O desvio para a afirmação dessa força na dissuasão interna e intervenção em assuntos políticos teria se iniciado na criação da Escola Superior de Guerra em 1949 durante a Guerra Fria, que “foi fundada com base no conceito de guerra revolucionária, do inimigo interno, da visão binária, [de que] você tem que ter um inimigo. E o Brasil, na nossa geopolítica, nós não temos um conflito externo”.
Ele ainda afirma que apenas a defesa do território também não é suficiente para o poder militar. A capacidade de desenvolvimento tecnológico é ainda mais importante e por isso lamenta projetos de privatização da Embraer, da Embratel, a entrega da base de lançamento de foguetes de Alcântara para os EUA, a descontinuidade de projetos como o da centrífuga de enriquecimento do urânio, entre outros. No caso da Embratel, por exemplo, a privatização passou para o controle de uma empresa mexicana os dois satélites de comunicações do Brasil; a Embraer era produtora de aviões altamente sofisticados, como o cargueiro K-390. A produção de tais tecnologias é essencial para um país da dimensão do Brasil. Mas, além do desenvolvimento técnico, Genoíno defende a integração regional dos países do Cone Sul, onde se concentram grandes reservas de água, petróleo, minérios e áreas agricultáveis de larga escala, o que seria mais estratégico que qualquer poder militar. Entretanto, o Brasil não tem mais exercido essa liderança regional junto aos países vizinhos da América do Sul.
Militares não podem ver povo como inimigo
Para Genoíno, as forças armadas não podem enxergar o povo, os movimentos sociais ou os partidos políticos como inimigos da nação. “Essa ideia de criar um inimigo está na raiz da doutrina da Escola Superior de Guerra, isso é um atraso monumental”. E prossegue: “Aliás, quando nós estávamos no Ministério da Defesa como assessor, fizemos um levantamento: onde teve ditadura militar as Forças Armadas foram sucateadas, porque onde existe ditadura você vai ter baioneta, bomba, tanque, cassetete, napalm, é isso. E isso não vale nada para a guerra, não vale nada. E a guerra cibernética? E a questão nuclear? E a questão do Espaço? E a questão do fundo dos oceanos? É disso que se trata”, afirma.
Genoíno defende que “nós temos que fazer um debate maduro sobre o papel político das Forças Armadas, e quem tem que dizer qual é esse papel não são eles, são os civis que são eleitos para exercer o regime democrático com base na soberania popular. A esquerda, por debilidades, por incompreensões e por derrotas, sempre imaginou que precisava ter um salvador: ou é um general, ou um marechal ou é um juiz togado. Não adianta! Para a esquerda o salvador é o povo, que tem que se organizar e dirigir o aparato militar; se não fizermos isso, nós não vamos consertar essa tutela militar que está muito profunda, veio para ficar, e esse é um dos grandes desafios do nosso processo democrático”.
Em relação ao quadro eleitoral para 2022, Genoíno crê que “existe uma oportunidade histórica das forças progressistas de esquerda construírem um polo e disputar pra valer o governo”, e Lula tem um papel central nessa equação: “A liderança do Lula é um fato que mudou a conjuntura. Eu costumo dizer que o Lula é maior do que o próprio Lula. Porque o Lula é esse novo que nasce das cinzas como uma fênix, e com tudo o que fizeram contra ele, ele produz esse fenômeno de esperança e de futuro. O Brasil não pode ficar com o futuro tutelado, com o futuro inviabilizado”.
A entrevista completa de José Genoíno sobre a Questão Militar pode ser vista no Canal Amigos ENFF no YouTube, em: https://www.youtube.com/watch?v=5ryhaW0krcE
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